Uma proposta em discussão no Congresso Nacional reacendeu o debate sobre os limites técnicos e legais da avaliação de imóveis públicos. Durante audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, em 8 de julho, representantes do Sistema Confea/Crea manifestaram posição contrária à Emenda nº 1 da Comissão de Trabalho (CTRAB) ao Projeto de Lei nº 2.283/2021, que autoriza corretores de imóveis a elaborarem laudos de avaliação destinados a órgãos e entidades da administração pública federal.
Para a engenharia, a medida representa um risco à segurança jurídica, à rastreabilidade dos processos e ao rigor técnico exigido na avaliação do patrimônio da União, especialmente em operações que envolvem interesse público e impacto fiscal.
Avaliação de imóveis públicos exige base técnico-científica
A avaliação de bens públicos não se limita à estimativa de preços de mercado. Trata-se de um procedimento técnico-científico, regulamentado pela ABNT NBR 14.653, que estabelece critérios objetivos, métodos estatísticos e fundamentos técnicos para assegurar precisão, isenção e auditabilidade.
Segundo o presidente do Confea, Vinicius Marchese, essa é a principal distinção entre a atuação do engenheiro avaliador e outras atividades do mercado imobiliário.
“Os métodos e critérios de avaliação possuem natureza técnica e científica, não se baseando em percepções subjetivas ou opiniões individuais”, destacou.
Marchese ressalta que o exercício da avaliação exige conhecimentos especializados em áreas como:
- engenharia econômica;
- estatística e regressão linear;
- georreferenciamento e geoprocessamento;
Esses elementos garantem que os laudos possam ser utilizados com segurança em processos administrativos e judiciais, incluindo desapropriações, alienações fiduciárias e definição de bases de cálculo de tributos como IPTU e ITBI.
Atribuições profissionais e respaldo legal
Outro ponto enfatizado pelos representantes da engenharia é o amparo legal da atividade avaliativa. Atualmente, imóveis urbanos são avaliados por profissionais da engenharia civil e arquitetura, enquanto imóveis rurais são de atribuição de engenheiros agrônomos, conforme a legislação vigente.
Durante a audiência, a vice-presidente técnica do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia (Ibape Nacional), engenheira civil Andrea Kluppel, reforçou que o debate transcende uma eventual disputa entre categorias profissionais.
“Não se trata de escolher entre profissões. Trata-se de decidir entre rigor científico e subjetividade, entre responsabilidade fiscal e risco de prejuízo ao erário”, alertou.
Kluppel destacou que a atuação técnica de engenheiros, arquitetos e agrônomos é respaldada por diversas normas e leis federais, como:
- Lei nº 5.194/1966 (engenharia e agronomia);
- Lei nº 12.378/2010 (arquitetura e urbanismo);
- Lei nº 14.011/2020, além de normativas específicas da Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Normativas da SPU e coerência regulatória
Um dos pontos centrais levantados no debate foi a Instrução Normativa SPU/ME nº 67/2022, que estabelece a obrigatoriedade de que os avaliadores de imóveis da União estejam regularmente registrados no Crea ou no CAU.
“Se o próprio órgão responsável pela gestão do patrimônio da União exige essa habilitação técnica, como justificar uma mudança que fragiliza esse critério?”, questionou Andrea Kluppel.
Para os engenheiros, a aprovação da emenda criaria um desalinhamento regulatório, abrindo margem para questionamentos jurídicos, insegurança nos processos e potencial aumento de litígios envolvendo avaliações patrimoniais.
Impactos e atenção do setor contábil
Para o setor contábil, o tema merece atenção especial. A avaliação de imóveis públicos influencia diretamente:
- registros patrimoniais;
- apuração de tributos;
- operações de alienação e concessão;
- equilíbrio fiscal e transparência das contas públicas.
Qualquer flexibilização nos critérios técnicos pode gerar reflexos contábeis relevantes, além de riscos de passivos futuros para a administração pública.
A diretora de Relações Institucionais do Crea-SP, eng. civ. Fabiana Albano Russo de Melo, reforçou o argumento da incompatibilidade entre a atividade comercial e a elaboração do laudo técnico. “Como você vai avaliar um imóvel que você vai ganhar um percentual do valor dele? Diferentemente da corretagem, o laudo técnico não é subjetivo. Ele é fundamentado, rastreável, auditável, com base em norma técnica. Se outro engenheiro analisar, ele consegue verificar se o laudo está correto. Isso não é possível com uma opinião de valor”, explicou. Para ela, apenas profissionais com formação lógica, domínio de sistemas prediais, estruturas e metodologia científica são capazes de aplicar corretamente a NBR 14.653. “Se até os bancos, que protegem o capital, exigem laudos técnicos de engenheiros e arquitetos, será que eles estão errados?”, questionou.
Também presente na audiência, o coordenador-geral de Avaliações e Contabilidade do Patrimônio da SPU, José Gustavo Barbosa Villaça, explanou sobre a responsabilidade de avaliar um patrimônio público estimado em R$ 2,3 trilhões, composto por mais de 770 mil imóveis, muitos deles com características atípicas, como terrenos de marinha, ilhas oceânicas, castelos e imóveis ribeirinhos. “Os imóveis da União têm valor público, representando parte da riqueza nacional do País, onde seu valor deve ser pautado por estimativas técnicas e auditáveis para dar suporte às políticas públicas e para sua correta contabilização no Balanço Geral da União”, explicou.
Segundo Villaça, a própria Lei nº 9.636/1998, que trata da regularização de bens imóveis da União, e os manuais da SPU já consagram a exigência de profissional habilitado e o cumprimento da norma ABNT para assegurar rastreabilidade e evitar conflitos de interesse. “Os procedimentos para realização do laudo de avaliação de imóveis devem estar em consonância com a ABNT, que define a engenharia de avaliações como o conjunto de conhecimentos técnico-científicos especializados, aplicados à avaliação de bens por arquitetos ou engenheiros. O olhar da Secretaria do Patrimônio da União em relação ao serviço especializado da engenharia de avaliação é de que toda ela cumpre seu rigor técnico, e disso nós não abrimos mão, porque nós somos, inclusive, rastreados pela auditoria dos órgãos de controle”, afirmou.
O eng. civ. Frederico Correia Lima Coelho, conselheiro do Ibape Nacional, chamou atenção para a diversidade de metodologias exigidas na avaliação de imóveis públicos, que muitas vezes não admitem o simples método comparativo direto de mercado. “Imóveis da União são, em sua maioria, completamente atípicos. Exigem o uso de outros métodos comparativos, como o de renda, evolutivo e quantificação de custo, dependendo da natureza do bem. Isso demanda conhecimentos específicos”, reforçou.
Já a presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR), Patrícia Sarquis Herden, destacou a distinção essencial entre parecer mercadológico e laudo técnico. “A análise da avaliação mercadológica se presta a formalizar uma opinião técnica de mercado, mas não pode se confundir com o laudo técnico, que carece de pré-requisitos técnicos científicos. Essa fundamentação mercadológica não prevê a demonstração dos critérios e cálculos que sustentam a avaliação de bens ou imóveis que terão seus valores investigados e verificados metodologicamente à exaustão por arquitetos, engenheiros e agrônomos”, disse.
Com a presença de outras lideranças do Sistema Confea/Crea e do CAU e também de representantes do Sistema Cofeci/Creci, o debate foi realizado por iniciativa da deputada Delegada Ione (Avante-MG), que expressou seu compromisso em ouvir todos os setores envolvidos. “É para coletar contribuições que nos ajudem a analisar a matéria e guiem a comissão na aprovação do melhor parecer possível que realizamos esta audiência pública”, afirmou. A parlamentar também ressaltou o caráter de interesse público da matéria, ao destacar que ela fortalece a transparência e a confiabilidade nos processos de avaliação de imóveis públicos, assegurando à sociedade, às empresas e ao próprio Estado o acesso a laudos que reflitam com precisão as condições estruturais e mercadológicas dos bens avaliados. De autoria do deputado Fausto Pinato (PP/SP), o Projeto de Lei nº 2.283/2021 tem a relatoria do deputado Reimont (PT/RJ). Acompanhe o trâmite da propositura.
Julianna Curado
Equipe de Comunicação do Confea
Fotos e informações: Agência Câmara de Notícias
Considerações finais
A reação do Sistema Confea/Crea à proposta evidencia a complexidade do tema e a necessidade de decisões legislativas alinhadas ao interesse público, à segurança jurídica e à boa governança. Mais do que uma discussão corporativa, o debate envolve a preservação de critérios técnicos que sustentam a confiabilidade das avaliações imobiliárias no âmbito do Estado.
Para empresas, profissionais da contabilidade e gestores públicos, acompanhar essa discussão é essencial, pois seus desdobramentos podem impactar diretamente práticas fiscais, patrimoniais e regulatórias nos próximos anos.
